TRANSformar: capacidade de mudar e ser
- semmeiaspalavras
- 20 de jun. de 2020
- 9 min de leitura
Por Laiz Queiroz Souza.
Fotos: André Miranda.
“Em festa de São João, eu não dançava quadrilha, porque tinha que usar vestido, e quando minha mãe me obrigava, eu literalmente, na metade da festa trocava de roupa. Eu ficava de Maria Chiquinha, mas trocava por botina, calça jeans e camisa xadrez.”

O que pode parecer apenas o relato de uma criança que não gostava nenhum pouco de festas de São João, na verdade é um relato de um jovem que se viu muito diferente dos outros desde muito cedo. Para além dos possíveis estereótipos as quais ele poderia tentar se encaixar, Brenda não demorou muito a iniciar sua trajetória em busca de entender a si mesmo, com muita maturidade e paciência. Brenda Oliveira, 24 anos, se define como um homem transexual não-binário. Com mais de 20 mil seguidores no Instagram, ele utiliza a sua voz e a sua tranquilidade para explicar e ajudar outras pessoas transexuais e seus familiares a passarem pela jornada da transição e do autoconhecimento. Nessa entrevista, ele explica como se descobriu transexual, a reação de familiares, amigos, como lida com a militância LGBTQ+ e porque decidiu manter seu nome de nascimento. Antes, no entanto, é preciso explicar alguns conceitos iniciais que podem causar confusão. Sexo biológico, orientação sexual e identidade de gênero são aspectos muito diferentes da vida de uma pessoa.

→ Sexo biológico é determinado pelos genitais, sistema reprodutivo, cromossomos e hormônios. Pode ser feminino, masculino ou intersexo (quando há presença de determinantes tanto masculinos quanto femininos).
→ Orientação diz respeito ao interesse sexual ou romântico por outras pessoas.
→ Identidade de gênero é como a pessoa se vê, que pode ser como mulher, como homem, como gênero neutro ou como bigênero.
Segue a entrevista:
Para começo de conversa, como foi o seu processo de descoberta da transexualidade?
Brenda: É um pouco complicado, porque na minha época, a geração de 1990, não teve tanta informação. No início, eu me entendi como mulher lésbica, por conta dos trejeitos masculinos. A gente cresce acreditando naquele estereótipo de mulher lésbica, então na fase da pré adolescência, eu tentava me enquadrar bastante, ser o mais feminina possível, mas não consegui por muito tempo. Com 15, 16 anos, eu meti o pé na jaca, não ligava muito para opinião das pessoas, falei para minha mãe que ia cortar o cabelo curto, mas não falei como ia cortar. Quando cortei, já voltei com as vestes masculinas. Eu brinco que fui fazendo a transição sem saber que estava em uma. Quando Tereza Brant surgiu, hoje o Tarso, muitas pessoas se descobriram, e eu me encaixei. Até aquele momento, já estava na academia, tentava masculinizar meu corpo, tinha trocado as roupas, tinha trocado tudo. Aí fui atrás de psicólogo, para tentar entender melhor essa questão da pessoa trans. Outra fase primordial foi meu primeiro contato com garotos trans, aos 21 anos de idade, quando eu participei de um concurso fitness trans, que era o primeiro até então, e conheci homens trans no Rio de Janeiro.
Transexual: pessoa a qual se identifica com um gênero diferente daquele que lhe foi dado no nascimento.
Você disse que seu corpo e sua mente foram se transformando inconscientemente e que você teve apoio psicológico. Como surgiu a necessidade desse apoio? Veio da sua família ou uma decisão sua?
Brenda: A questão do apoio psicológico surgiu mais como uma necessidade, e não foi literalmente um acompanhamento. Como o Tarso apareceu, e eu já estava fazendo minha transição sem saber, eu só queria tentar entender melhor esse mundo. E quando busquei ajuda psicológica, foi mais pra tirar dúvidas e ver se aquilo era onde me encaixava mesmo, porque na época eu ficava muito perdido. O acompanhamento psicológico mesmo só ocorreu há um ano e meio atrás, que consegui entrar pelo SUS.
Sobre as amizades que citou: você tem amigos que te acompanharam desde o início? Qual foi o papel deles (as) nesse processo?
Brenda: Eu sempre fui muito comunicativo, tinha facilidade de conversar, então tive amizade com muitas pessoas, mas sabe aquela pessoa que conhece e brinca com todos, mas no final sempre está sozinho? Não tive um grupo de amigos a ficar andando especificamente, era muito esse tipo de pessoa que ficava pulando nos grupos. Estudei por muitos anos na rede particular, quando fui para rede pública, eu comecei a fazer minha transição, tinham pessoas que estudaram comigo dos 8 aos 15 anos e não me viam há muitos anos, então quando me viram, acharam muito legal, e isso foi um alívio. Não que eu precisasse da opinião deles ou de algo para me fazer inteiro, porque eu já estava inteiro quando eu reencontrei essas pessoas.
Você falou que sua mãe sentiu um certo impacto no começo, mas que depois as coisas mudaram. Como foi a reação da sua família?
Brenda: Durante dois ou três anos, minha avó me criou para minha mãe trabalhar em outra cidade, e eu era mimado, tanto que todo mundo sempre falou que eu era o neto predileto da minha avó. Teve uma coisa que minha mãe me contou que nem eu sabia: quando falei da minha orientação sexual, ela ficou uns 3 meses quieta, muda, tentando entender essa questão. Era o primeiro caso da família, então foi um baque, mas quem interveio, quem conversou com ela, foi minha avó. Isso me deixou surpreso, porque minha avó sempre foi muito rígida na criação dos filhos, dos netos nem tanto, e ela falou uma coisa pra minha mãe que eu não esqueço, “que eu não ia deixar de ser filho dela por essa questão, que não se joga um filho fora”. Eu falo que sangue nosso até mosquito tem, porque família pra mim é quem me ama e me aceita do jeito que eu sou.
Sobre a transição, quando isso se tornou algo mais consciente para você? E como foi? Houve alguma mudança mais impactante?
Brenda: Eu fiquei mais consciente sobre essa transição física primeiramente aos 17, 18 anos que era o reflexo que eu via no espelho. Tudo o que eu almejei, na época, eu tinha conseguido. Era o início do início? Era, mas minha autoestima já era outra, a minha liberdade, até o meu modo de expressar era outro, eu era mais livre em relação a essas coisas, a (condição) física me ajudou muito emocionalmente também, porque no decorrer das fases, fui aprendendo a ter que controlar humor, por conta de testosterona, a ser mais acessível, mais educado, ter um certo nível de paciência, tentar ensinar às pessoas o porquê eu era diferente dos outros, e isso foi mexendo na minha maturidade também. Sobre a mudança mais impactante, eu me sinto um velho hoje, emocionalmente falando (risos). Eu não sou mais tão ousado quanto era quando mais novo, acho que a questão da idade, não sei. A questão da maturidade, é isso que se chama. Porém fisicamente, uma questão que eu odeio é o cabelo, a queda dele.
Quando decidiu começar a tomar os hormônios?
Brenda: Eu comecei a querer tomar hormônio aos 17, mas eu interrompi, porque eu fiquei com muito medo. Comprei meu hormônio com gente da academia, e fiquei com medo devido a várias pesquisas, então eu desisti. Aí somente aos 21 anos eu retornei, com uma maturidade a mais, tentei entrar nos SUS, já sabia qual hormônio deveria usar na época, então eu reiniciei, e foram dois anos contínuos, dos 21 aos 23 anos. Aos 23 anos, entrei no SUS, eles pediram para eu reiniciar, colocar outro hormônio, ficar um tempo sem para reiniciar o tratamento com acompanhamento psicológico e hormonal, só que com outro hormônio.
A terapia hormonal consiste em uso de testosterona por homens trans ou uso de estrógeno e/ou de antiandrógenos por mulheres transexuais ou travestis. Pessoas não-binárias podem também ter interesse em realizar terapia hormonal.
Fonte: Cuidado de Pessoas Transexuais e Travestis/Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade
Quais são suas expectativas em relação às cirurgias?
Brenda: Em relação a cirurgia, eu estou na fila, às vezes acontece muitos probleminhas dentro do sistema do SUS, que é um pouco bagunçado ainda. Tem dois anos que estou na fila esperando, mas geralmente a fila demora só seis meses. Eu pretendo fazer a mastectomia, mas a histerectomia parcial, porque penso em retirar somente os ovários, já que se amanhã a minha namorada não puder gerar uma criança por algum problema de fertilidade, ou qualquer que seja, eu posso tentar gerar. Já a mastectomia eu penso, mas eu sempre cuidei do meu peito para ele diminuir, com exercícios e tudo mais, então no dia que vir vou ficar muito feliz. Hoje eu sou um pouco menos disfórico justamente porque eu tento me cuidar, para não ter essa disforia muito grande.
Mastectomia: é o nome dado à cirurgia de remoção completa da mama e consiste em um dos tratamentos cirúrgicos para o câncer de mama, para a ginecomastia ou como parte da cirurgia de redesignação sexual do homem trans.
Histerectomia: é um procedimento cirúrgico que consiste na retirada total ou parcial do útero e anexos. É dita total quando se retira o corpo e o colo do útero; subtotal, quando só se retira o corpo do útero e radical quando, juntamente com o útero, são retirados os ovários e as trompas de Falópio (que ligam os ovários ao útero).
DISFORIA: Disforia de gênero é definida como um desconforto ou sofrimento causados pela incongruência entre o gênero atribuído ao nascimento e o gênero experimentado pelo indivíduo.
*Fonte: Classificação presente no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais de 2012 (DSM-5), editado pela Associação de Psiquiatria Americana (APA).
Acredito que muitas pessoas têm muitas dúvidas sobre a parte médica e burocrática, como acontece esse tratamento pelo SUS?
Brenda: Por mais que o governo, prefeitura, pague pela nossa cirurgia, nós dependemos muito da burocracia dentro do hospital que é bem complicada. Nós vamos lá, pedimos encaminhamento e se os profissionais do postinho de saúde não souberem te encaminhar, você acha que está sendo encaminhado, mas não está. Seu pedido vai ficar ali retido, até um dia você dar um jeito de ver o regulamento e ver qual é o procedimento correto para ser encaminhado. E infelizmente, muitos não sabem disso. Então tem todo esse aparato aí, que enrola muito a vida de quem é transexual e também precisa de cuidados em relação à saúde, ao psicológico, durante essa transição.
Você mencionou o fato de ter que se preparar mentalmente, se tornar mais paciente para explicar para as pessoas, foi muito difícil?
Brenda: A questão era porque eu tinha que saber mais sobre o meio trans, se quisesse passar informações adiante. E é um meio muito grande, se for parar para pesquisar, ainda mais sobre pessoas não-binárias. Essa era minha preocupação, até porque eu sempre fui muito paciente para conversar, e muitos não tem essa paciência, tirar uma dúvida, trocar uma ideia, eu já fui assim. Tanto que eu tenho amigos que são extremistas na questão da militância trans, eu conheço feministas maravilhosas, então eu conheço um pouquinho de cada um e eu tento conversar para entender.
NÃO-BINÁRIO: Termo associado a pessoas cuja identidade ou expressão de gênero não se limita às categorias "masculino" ou "feminino". Algumas pessoas não-binárias podem sentir que seu gênero está "em algum lugar entre homem e mulher", ou até podem definir seu gênero de maneira totalmente diferente — e distante — destes dois polos.
Fonte: GLAAD (Gay and Lesbian Alliance Against Defamation)
Você disse conhecer pessoas de diversos espectros e posições políticas. Levantar a bandeira, militar são coisas quase exigidas hoje em dia. Como você lida com isso?
Brenda: Eu tento lidar da forma mais leve possível, respeitando, porque eu não conheço às vezes a luta de uma bandeira. A gente cresceu em um país que é homofóbico, lesbofóbico, transfóbico, então cada luta é uma luta, e eu respeito muito isso e tento aprender com um pouco de cada. Agora se você me perguntar se eu sou uma pessoa militante, eu não falo que sim, sou militante, as pessoas falam que minhas ações são de tentar postar vídeos explicando sobre disforia, falando sobre como cuidar para diminuir os seios. A minha forma, o meu ´jeitinho´ de lidar com a militância, é tentar informar a galera que está passando pela transição, da galera que está lidando com quem está passando pela transição, falar sobre mãe, pai, família. Inclusive pessoas da família me procuram para conversar com a pessoa que está passando pela transição, então eu fico muito feliz em poder ajudar.
Como você conheceu e conseguiu se identificar como não-binário? Acredito que seja um espectro LGBTQ que está no início do debate, tanto pra quem é LGBTQ, como para quem não é. A decisão de manter o seu nome vêm dessa identificação com o não-binarismo?
Brenda: No início eu apanhei, confesso, porque eu sabia que era uma pessoa trans, justamente por ter feito a transição, mas eu não entendia o porquê era diferente dos demais. O porquê eu gostava tanto do meu nome a ponto de mantê-lo e não ter vergonha dele, se alguém me chamava pelo pronome ela ou ele, isso não me incomodava, eu tinha muitos porquês na minha cabeça, muitas perguntas que eu não entendia. Eu sabia que era diferente dos demais e isso infelizmente era ruim, porque eu era muito criticado. Só fui saber da existência da não-binariedade depois, que uma pessoa trans falou comigo que existia o não-binarismo, pessoas fluídas, pessoas bigêneras, dentro de outras inúmeras identidades de gênero, foi quando eu pesquisei sobre e fui falar com meu psicólogo. Hoje eu sou super seguro disso, eu faço questão de tentar explicar para pessoas o que é uma pessoa não-binária, binária, as diferenças, eu não vejo tabu em explicar isso.
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Laiz Queiroz Souza: @laizqs
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